Ser Farol quando já não somos porto
- 16 de jul.
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Há um momento na vida em que os nossos filhos deixam de nos contar tudo. Deixam de partilhar os pormenores do dia, as amizades, os medos, os sonhos. De um momento para o outro, parece que passámos de porto seguro a território estrangeiro. E isso dói. Não porque não compreendamos que crescer implica afastar-se, mas porque nem sempre estávamos preparados para o silêncio que esse crescimento traz.
A adolescência é esse tempo estranho em que a necessidade de independência e a vontade de proximidade se misturam numa dança confusa. Eles afastam-se para se encontrarem, mas no fundo ainda precisam de nós como nunca. Só que agora… não sabem bem como o dizer. Nem como o pedir.
Como mãe e como profissional da área da psicologia, sei bem que o afastamento nesta fase não é rejeição. Mas também sei que não saber interpretar esse afastamento pode gerar uma sensação de perda real em nós. Passamos de fazer parte de tudo para sermos apenas espectadores. De sermos os braços onde se aninhavam, para sermos os olhos que veem portas fechadas. O "como foi o teu dia?" passa a ser respondido com "normal". O "estás bem?" vira um "sim", seco, vago. E no fundo… sabemos que não está tudo bem.
E é aqui que começa o desafio mais complexo da parentalidade: continuar a estar presentes mesmo quando somos empurrados para fora. Amar de longe, sem desistir. Esperar à porta do coração deles sem bater com força. Estar disponíveis sem invadir. Porque nesta fase, tudo é vivido de forma intensa, confusa, muitas vezes contraditória.
Os adolescentes não se afastam por mal. Afastam-se porque estão a aprender a ser. Estão a experimentar quem são sem o nosso olhar sempre presente. Estão a testar os próprios limites, a construir um "eu" que já não é extensão de nós. E, por mais difícil que seja aceitar, isso é saudável. É crescimento. É vida em construção.
Mas é claro que para nós, pais, dói. Dói quando sentimos que já não nos contam nada. Dói ver os olhos que antes nos procuravam, agora a evitarem o nosso olhar. Dói não os reconhecer nos comportamentos, nas palavras, nas atitudes. Dói o medo de estarem a sofrer e nós não sabermos. O receio de estarem a tomar más decisões e não conseguirmos prevenir. A frustração de ver erros a acontecer diante de nós… e não sermos ouvidos.
E ainda que saibamos que isto “faz parte”, que “é uma fase”, isso não torna tudo mais fácil. Porque esta fase mexe com os nossos medos mais primitivos: o de perder, o de falhar, o de não sermos mais importantes. Mexe com a nossa identidade enquanto pais. Com a nostalgia do tempo em que tínhamos mais controlo, mais presença, mais certeza.
Mas aqui está a verdade que mais me acalma: mesmo quando parecem longe, os nossos filhos estão a observar-nos. Mesmo quando se calam, ouvem-nos. Mesmo quando contestam tudo o que dizemos, levam dentro deles aquilo que semeámos. Pode não parecer. Pode parecer que nada do que dizemos chega. Mas chega. Chega mais tarde, chega disfarçado, chega nas escolhas que fazem sem sequer saber porquê. Chega quando nos dizem “lembras-te quando me disseste aquilo?” e nós pensávamos que tinham ignorado completamente.
Neste processo de afastamento, o nosso papel muda. Deixamos de ser condutores para sermos faróis. Deixamos de conduzir a viagem para apenas garantir que a luz continua acesa, mesmo quando se perdem um pouco no caminho. Precisamos confiar na base que demos. Na educação que oferecemos. Nos valores que cultivámos. E perceber que o amor, mesmo sem palco diário, continua a ser o chão onde eles assentam os passos — mesmo que nem eles tenham consciência disso.
Mas há outro desafio que caminha lado a lado com este afastamento: a difícil arte de impor limites sem destruir a relação. Porque se por um lado queremos respeitar o espaço deles, por outro não podemos abdicar do nosso papel de guias. E isso exige equilíbrio, paciência e, acima de tudo, intenção.
Impor limites nesta fase pode ser visto por eles como uma afronta, uma invasão, um gesto de desconfiança. Mas não é. É amor em forma de estrutura. É um lembrete de que ainda há alguém a cuidar, mesmo quando eles fingem que já não precisam. O problema é que muitas vezes, ao tentar impor esses limites, entramos em confronto. Levamos para o lado pessoal, sentimos-nos desrespeitados. E eles, por sua vez, sentem-se atacados, oprimidos, incompreendidos.
É aqui que tantas relações se deterioram. Quando o amor entra em modo de defesa. Quando em vez de pontes, erguemos muros. Quando deixamos de conversar para começar a gritar. E tudo o que desejamos — que é protegê-los, orientá-los, trazê-los de volta — acaba por gerar ainda mais afastamento.
A verdade é que há formas de manter os limites sem perder o vínculo. Mas exigem de nós mais escuta do que discurso. Mais paciência do que razão. Mais presença do que imposição. E também… mais perdão. Porque vamos errar. Vamos ultrapassar o tom. Vamos exigir demais. Vamos ceder de menos. E vamos, muitas vezes, sentir que estamos a falhar.
Mas cada tentativa de impor limites com amor é uma semente. Mesmo que a resposta seja um grito, uma porta a bater, um olhar desdenhoso. Mesmo que pareça que não resulta. Resulta. Mais tarde, quando o turbilhão acalmar. Quando a maturidade permitir ver a intenção por detrás do gesto.
No fim, não é sobre controlar. É sobre proteger. É sobre mostrar-lhes que, apesar do barulho do mundo e das dúvidas internas, há um lugar onde o amor não desiste, onde a porta está sempre aberta, e onde há regras não para oprimir, mas para cuidar.
Eles vão voltar. E quando voltarem, que encontrem não só a nossa presença… mas também a segurança de limites que sempre os protegeram. Mesmo quando os irritavam.




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